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Fragmentação, peso e leveza - Galeria Virgílio (SP - nov/dez 2016)


Rodrigo Naves



A questão que move os trabalhos de Marília é o esforço para estabelecer uma junção, mais ou menos estável, de elementos frágeis, sejam eles o significado de um poema ou cacos de vidro. Os fragmentos de uma lâmina de vidro voltam a encontrar uma unidade fugaz quando pressionados contra uma folha de papel, formando um relevo que os reaproxima.

Como acontece com os copos americanos partidos e restaurados por meio da técnica japonesa kintsugi – que deixa à mostra as emendas do restauro --, uma estreita área de papel se interpõe entre os vários cacos que o pressionaram.

O ideário ligado ao kintsugi – embora não se mostre imediatamente aos sentidos – parece fornecer uma via de acesso privilegiada à produção de Marília. Essa técnica de recuperação de cerâmicas quebradas – que deixa à mostra as marcas dos encaixes – possui um significado mais direto, que diz respeito à valorização do uso de certos objetos, com a consequente incorporação neles dos acidentes que os marcaram. Uma cerâmica restaurada segundo esses princípios revelaria seu vínculo com as mudanças provocadas pela passagem do tempo. Só que agora elas se tornam parte integrante de um utensílio cuja singularidade se acentuaria pela carga afetiva depositada nele por meio desses cuidados.
Num plano mais abrangente, esse processo técnico remete a uma concepção de mundo. Desse ponto de vista, os acidentes e surpresas (positivas ou negativas) que a existência lança sobre nós, devem ser acolhidos sem lamúrias ou vaidade.

A vida está longe de constituir um percurso lógico ou uma trilha determinada pela vontade. Sendo assim, as cicatrizes com que a experiência nos marca devem ser incorporadas a nosso caráter, tornando a personalidade menos afeita a uma inteireza ilusória e arrogante.

Há, sobretudo entre jovens aristocratas ingleses, uma tradição aproximada. O uso, por exemplo, de um paletó de tweed herdado de um bisavô, muitas vezes já puído pelo uso prolongado, aparece como uma distinção de classe. São os novos-ricos que ostentam roupas novas e caras.

O uso do paletó de tweed muitas vezes já puído pelo uso prolongado, mas herdado de um bisavô, é uma distinção de classe. São os novos-ricos que gostam de ostentar roupas novas impecáveis e caras.

Na tradição do kintsugi tal comportamento seria posto descartado, justamente por reforçar um lado egoico estranho a essa linhagem do pensamento oriental.
Marília del Vecchio, ao associar a técnica do kintsugi a um objeto absolutamente destituído de dignidade familiar ou social – o copo americano, produzido pela Nadir Figueiredo desde 1947, já vendeu mais de 6 bilhões de unidades mundo afora – , inverte conscientemente o sentido desse procedimento tradicional. Quem observa os filetes de ouro que unem os fragmentos do copo, mesmo que desconheça totalmente o pensamento que o justifica, notará o descompasso presente na situação.

Dificilmente haverá um brasileiro que não tenha se encontrado diante de um desses copos durante a vida. Eles constituem um objeto de domínio público, usado para se beber de aguardente a leite nas casas ou na rua. O filete de ouro introduzirá um ruído na produção massificada e despersonalizada desses objetos.

Nesse aspecto, Marília opera à semelhança das “Inserções em circuitos ideológicos”, de Cildo Meirelles. Nessas intervenções Cildo carimbava cédulas de dinheiro com inscrições contrárias à ditadura militar, como “Quem matou Herzog” e as devolvia à circulação. Ou então, em garrafas vazias de Coca-Cola, punha adesivos com dizeres – impressos com tinta branca – como “Yankees, go home”. Quando as garrafas voltavam a ser preenchidas com o líquido escuro do refrigerante, as frases tornavam-se bem mais visíveis. Hoje, a eficácia desse procedimento pode parecer singela, mas a argúcia do procedimento é notável.

Tanto quanto o copo americano, o dourado também tem um significado corrente, associado a valor e prestígio. Postos lado a lado, a trivialidade do copo e o estatuto diferenciado do ouro criarão um curto-circuito que suspenderá o ato mecânico de beber algo. E esse estranhamento poderá devolver àquele processo desconhecido pelo usuário (o kintsugi) um viés perceptivo e empírico que os trabalhos decididamente conceituais se recusam a alcançar.

Nos relevos em papel branco, a unidade dos cacos de vidro se reunifica ao se verem postos lado a lado novamente sobre uma nova superfície. Contudo, a fragilidade dessa reunião se mostra na dificuldade de os olhos identificarem a diferença entre fragmentos e relevo. As partes rebaixadas são tão rasas que a luz mal consegue produzir as sombras que facilitariam a percepção do desenho impresso sobre o papel.

Tudo nos trabalhos de Marília procura acentuar a fragmentação da vida contemporânea e os momentos que, por afeto (amizade, amor etc.), solidariedade ou diálogo, a existência fugazmente procura transpô-las.

“Palíndromo”, uma escultura composta por 5 placas de vidro apoiadas instavelmente entre si, possivelmente revela bem sua poética. Leveza, transparência e risco –, algo totalmente impossível de perceber, por exemplo, numa escultura do norte-americano Richard Serra (que já realizou trabalhos em aço cor-ten pesadíssimos com um desenho semelhante ao da escultura de Marília) – convivem de forma quase paradoxal. A instabilidade das placas pode até mesmo fazê-las cair de um instante a outro. E isso quase não ofereceria risco aos observadores.

O poema de Pushkin oferece dificuldades a alguém, como eu, que não conhece a língua russa. As minúcias de ritmo, sonoridade e significado dificilmente se mantêm numa tradução, ainda que de alta qualidade. Assim, é inevitável, ao menos para mim, me ater ao sentido dos versos, que falam da dor da separação dos amantes e da permanência do amor na lembrança.
Marília recortou as palavras do poema original (em cirílico) numa folha de latão e as superpôs em várias camadas. As palavras foram coladas a placas de vidro dispostas paralelamente umas às outras, fixadas em encaixes feitos em suportes de latão.

Como o amor que afastou os amantes (e que ainda permanece), o trabalho se mostra como separação e simultaneamente como a projeção, imaginária e real, de uma unidade perdida.

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