Desafios do pertencimento recíproco
Paulo Miyada e Priscyla Gomes
Ter lugar, consistir e residir são também, em certa medida, processos identitários. O termo residir guarda especificidades que concernem tanto ao que abriga quanto ao abrigado, numa relação intrínseca entre inventariar memórias e conferir significados.
Propor uma residência artística não deixa de ser, por isso, um processo de enraizamento individual e coletivo, fruto da apropriação de um espaço ainda estranho aos artistas. No caso específico do Condomínio Cultural, hoje concebido como um espaço que absorve e incorpora vestígios dos mais distintos usos pregressos, tal processo identitário perpassa uma arqueologia inventada das memórias do próprio espaço.
Indícios históricos, construtivos, orais, somam-se em camadas sucessivas em um edifício cuja transitoriedade é sugerida por singelas interferências arquitetônicas. Atenta a isso, a experiência de Marília Del Vecchio empreende sua própria versão de uma arqueologia material, corporificada pelo contínuo questionamento de seu processo criativo durante a residência.
Nos meses em que atuou no Condomínio Cultural, os elementos construtivos mais abundantes pelo edifício – telhas de barro e tijolos – constituíram o cerne de sua investigação. A argila queimada das telhas constantemente removidas pela reforma da cobertura do prédio sofreu um processo de moagem manual exaustiva, reduzindo-se a pó avermelhado. Em seguida, essa matéria foi remoldada e ganhou a forma de um tijolo de tamanho idêntico aos da maior parte das paredes. Após experimentos de possíveis métodos de secagem de uma massa deita de argila já queimada, um único tijolo estava pronto.
Desfazer um elemento de coberta e refazer elemento construtivo basilar emula a fundação do lugar em que o novo tijolo se assenta, inserido como registro material reinventado. Nele, o laborioso processo realizado pela artista é sugerido pelas sucessivas camadas e imperfeições facilmente reconhecíveis no tijolo inserido em uma parede como nova parte do conjunto edificado.
Do que poderia ser uma analogia puramente formal entre camadas sucessivas da matéria, decorre o segundo trabalho de Del Vecchio: uma instalação de placas de vidro justapostas, ora apoiadas contra a parede, ora parcialmente emolduradas como cavaletes transparentes.
Pequenas variações cromáticas, sombras sobrepostas e linhas que se interceptam configuram um despretensioso mosaico completado pelas reflexões diversas que se apreendem em cada um dos vidros inclinados conforme se caminha pela sala. Todos esses vidros estão voltados para uma parede repleta de janelas e ao público cabe percorrer o espaço entre intersticial entre essa parede e a instalação. Assim, percebe-se sempre a imagem de ambos sobrepostas, com fragmentos da sala e da Vila Anglo Brasileira recombinados constantemente pelo olhar.
Se é possível dizer que pertencer a um lugar e nele permanecer são duas variáveis de um processo incessante de auto-compreensão, é notável que, justamente nesta residência, Del Vecchio tenha aberto mão da presença literal de seu corpo em suas obras, explorando práticas processuais engajadas com materiais associados à fisicalidade do edifício. Para a artista, residir talvez tenha se tornado o desafio de assumir-se como telha, tijolo, vidro e edifício – impregná-los de si para tornar-se como eles.
Até aquele momento - Condomínio Cultural (SP - novembro 2013)